quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

218- JOSÉ LINO COUTINHO

218- JOSÉ LINO COUTINHO
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Nasceu em Salvador, em 31 de março de 1784, sendo seus pais José Lino dos Santos, português residente na capital baiana e Luiza Rosa Coutinho.
Realizados os estudos de humanidades, partiu para Portugal, ingressando na Universidade de Coimbra, onde recebeu o grau.
Concluido o curso médico, viajou para a França e Inglaterra, onde aperfeiçoou seus conhecimentos.
Voltando para o Brasil, fixou-se em sua terra natal, onde exerceu a clínica e tomou parte proeminente na luta pela independência do Brasil.
Nomeado membro da Junta Provincial, foi eleito, em 1821, deputado às cortes portuguesas.
Depois da vitória das forças brasileiras, foi eleito deputado às duas primeiras legislaturas, fazendo-se opositor ao Imperador D. Pedro I.
Com a abdicação do nosso primeiro monarca, foi ministro do Império durante o curto período de seis meses.
Em 4 de outubro de 1825, tomou posse como Lente proprietário da cadeira de Patologia Externa.
De 1926 a 1829, foi eleito Deputado Geral, quando teve atuação marcante.
De sua autoria é o projeto sobre a organização do ensino médico, projeto que propunha a criação de mais uma  Faculdades de Medicina, além das existentes no Rio de Janeiro e na Bahia. A nova faculdade seria a do Maranhão. Nas três faculdades funcionariam cursos de Farmácia, Medicina e Cirurgia com a duração, respectivamente, de três, seis e quatro anos.
Em 1828, apresentou  um projeto de saúde pública.
Em 1829, reassumiu a cátedra e no ano seguinte foi reeleito Deputado, assim permanecendo de 1830 a 1833.
Em 1833 foi eleito Primeiro Diretor efetivo da Faculdade de Medicina da Bahia, cargo que exerceu até o ano de 1836 (ano de sua morte).
Foi poeta, deixando alentada coleção de inspiradas poesias.
Segundo Sá Oliveira, “foi o Dr. Lino um professor culto, clínico humanitário, político modelar, tribuno fulgurante,, estadista operoso, administrador progressista, literato fecundo e jornalista intrépido” (3) . E mais: “Durante toda sua vida, deu provas de um caráter reto e de uma sincera modéstia” (Ibidem).
Cavaleiro da Ordem de Cristo, Conselheiro do Imperador, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa e médico honorário da Imperial Câmara, José Lino Coutinho figura como uma das mais importantes figuras da medicina brasileira.
De sua autoria são numerosos trabalhos científicos,dos quais destacamos “Afecções catarrais por Cabanis” (1816), “Topografia médica da Bahia” (1832), “Coleção de fatos principais na história do cólera-morbus epidêmico” (1833) e “Memória sobre as águas naturais da Bahia”.
Diz Antônio Pacífico Pereira: “Além de grande médico, Lino Coutinho erudito filósofo e profundo moralista. Suas “Cartas sobre educação de Cora” ,  seguidas de um “Catecismo moral, político e religioso”, são um modelo de cultura espiritual, dedicado a sua filha pelo varão ilustre que foi o mentor da Faculdade de Medicina    em sua fase inicial” (2)

FONTES BIBLIOTÉCAS:
1.       Loureiro de Souza, Antônio. Baianos Ilustres. Salvador,1973.
2.       Pacífico Pereira, Antônio – Memória sobre a Medicina na Bahia.
3.       Sá Oliveira, Eduardo de – Memória Histórica da Faculdade de Medicina da Bahia, concernente ao ano de 1942. Salvador, 1992.


APÊNDICE I
“CARTAS SOBRE A EDUCAÇÃO DE CORA” (1849)
(Extraído de Reis Alves, Adriana Dantas (UEFS)- “OPreoared fir dekuvery abt the 2004 Meeting if the American Studies Association, Las Vegas, Nevada. October, 2004)

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“A implantação da Corte no Brasil, e principalmente a Independência,
proporcionaram a difusão dos novos espaços e formas de sociabilidades femininas, como salões, bailes, teatros, literaturas, ao mesmo tempo em que as idéias do século, chamavam a atenção dos homens de letras sobre uma nova preocupação, a educação das mulheres da elite. As falas de políticos, médicos, jornalistas, advogados, eclesiásticos, e algumas mulheres letradas da época, fizeram parte dos projetos para educação feminina.
Alguns discursos defendiam a mulher ilustrada ou higiênica, ou utilizaram-se da imagem católica do mito de Maria, como referencia indispensável na ênfase à maternidade e virtuosidade. No entanto, todos concordavam, com o destino natural das mulheres, e ao qual a sua educação deveria atender, que era o de casarem-se e tornarem-se mães dedicadas, esposas exemplares e boas administradoras do lar.
As novas formas de socialização, assim como a circulação de periódicos, manuais de boas maneiras, tratados de educação e escolas, traziam uma forte influência francesa, configurando-se um novo modelo de elite na Bahia. Tanto a presença das mulheres em público; nos salões, bailes, teatros etc. como na casa, exigiam uma educação apropriada, tornando-se objeto de análise de muitas publicações, em periódicos, teses de medicina e
publicações católicas. Herdeiros diretos do modelo rousseauniano de educação, mas quase sempre influenciados também pela moral cristã, muitos guias, manuais ou tratados de educação, foram publicados e circularam por todo o Brasil. As Cartas sobre a Educação de Cora (1849) foi uma dessas publicações.
O Dr. José Lino Coutinho, com o objetivo de formar o físico e o espírito da filha, Cora, escreveu no total 41 Cartas, mais um Catecismo, das quais enviou as primeiras 27, que compõem a primeira parte do livro, à preceptora de Cora, referindo-se à formação da  filha até a adolescência (14 anos). As demais 14, que formam a segunda parte, foram enviadas diretamente à Cora, e falam dos futuros encargos que teria como esposa, mãe e administradora da casa e de escravos. Essas estavam inseridas na preocupação geral em torno da formação da elite feminina de acordo com o progresso do século, tornando-se um tratado inédito na Bahia em seu tempo e um marco na construção de um novo ideal de mulher, por suas influencias liberais, e por trazer como proposta, a crítica aos costumes tradicionais da elite baiana.
No entanto, falar em mulheres que pertenciam à elite baiana no século XIX não é nada fácil. Além de não existirem estudos sistemáticos sobre o tema, os conceitos sobre a elite são estáticos e androcêntricos para entendermos a dinâmica representada nas fontes do período, ou seja, nem todos tinham dinheiro, prestígio e poder ao mesmo tempo.
Segundo Kátia Matosso1, as definições sociais na Bahia no século XIX levavam em consideração não apenas o critério econômico, mas principalmente o prestígio e o poder.
Ela divide as estratificações sociais em duas: a rural (Recôncavo) e a urbana (capital).
Tratava-se de uma estratificação dividida em quatro grupos, dos quais o primeiro era
composto pelo que podemos chamar de elite, e reunia todo aquele cujos rendimentos líquidos ultrapassavam um conto de réis, atingindo desde os altos funcionários graduados da administração real, os grandes negociantes, o alto clero secular, e por fim, aos grandes proprietários de terras e escravos (senhores de engenho ou pecuaristas).
Nessa definição percebemos que os critérios utilizados são masculinos.
Dificilmente uma mulher da elite era verdadeiramente proprietária, a não ser por herança  ao contrário das mulheres libertas ou livres pobres, que através do trabalho informal como vendedoras, prostitutas, lavadeiras etc. conseguiam adquirir algum tipo de bem para a sobrevivência. Portanto, como apreendê-las? Como saber o que as fazia sentirem-se enquanto elite? Que tipos de identidade femininos construíam para serem aceitas socialmente como tal? Certamente as senhoras Bulcão, Albuquerque, Aragão, Moniz etc. eram da elite, no entanto não é apenas o prestígio de suas famílias que as tornavam “senhoras da sociedade”. Existia um código de comportamento, indispensável, para serem reconhecidas pelo seu grupo como tais.
Um ponto em comum que caracterizava as mulheres como pertencentes ao grupo dominante é o fato de possuírem escravos, que aliás não era um privilégio da elite. Ou seja, dinheiro elas não tinham (o dote era dado ao seu marido), as terras eram administradas, como dizem os inventários, por sua “cabeça” (o homem), com raras exceções. Já os escravos elas possuíam, mandavam e desmandavam, praticavam violência contra eles ou os beneficiavam, enfim, é o momento em que as mulheres possuíam e exerciam poder. No entanto, o fato de possuírem escravos e exercerem poder sobre eles não as equivale ao homem. Foram incluídos nos discursos da época, sobre educação, critério de comportamento feminino que padronizasse o poder sobre seus escravos. Assim, se por um lado ter escravos era igual para homens e mulheres, por outro a condição de proprietário de escravos perpassava pelas diferenças de gênero redefinindo
as relações escravistas. Na prática, vamos perceber como esses modelos foram forjados, vividos e transgredidos.
Nas Cartas sobre a Educação de Cora percebemos uma preocupação constante de Lino Coutinho com a presença dos escravos e sua possível influência sobre a educação de sua filha. Desde cedo se deveria ter todo cuidado com a influência dos escravos, principalmente a linguagem. A primeira etapa da educação deveria ser, segundo Coutinho, o mais livre possível, através de jogos de cartas e pinturas. No entanto, dizia, dever-se-ia ter cuidado em que ela evite e desconheça a linguagem estropiada dos
escravos e da gente mais baixa, que fala mal e viciosamente. (...) Só com a
freqüência das boas e honestas sociedades, e com o trato da gente polida,
que se adquirem as boas maneiras e a civilidade
Na segunda época, que começaria a partir dos sete anos, Lino Coutinho
continuava com sua preocupação. Cora deveria refletir acerca do que fazia e visse fazer aos outros, portanto se deveria ter todo cuidado, as ações dos adultos deveriam ser honestas, graves e polidas, em conseqüência disto deveria ser evitada, ao máximo, a comunicação de Cora com as escravas, que ordinariamente, imorais, falam e obram sem pudor; quando, pelo contrário, muito ganhará ela nas sociedades escolhidas, verdadeira escola da boa conversação e maneiras.
Nesta citação percebemos que o autor refere-se, especificamente, às escravas, que, além de serem as mais próximas de Cora, falavam e obravam sem pudor, característica que ele atribuía ao sexo feminino e não aos escravos em geral. As escravas faziam parte de outra categoria social de mulheres, tinham uma cultura própria, um jeito de relacionarem-se com o mundo que era definido por Lino Coutinho como estropiado.
Portanto, ele propõe uma distância entre Cora e as escravas, impossível na prática, como podem constatar as memórias de Anna Bittencourt.
Nascida na fazenda Retiro, termo da Vila de Itapicuru, em 1843, Anna Ribeiro teve uma infância um pouco difícil, principalmente no que diz respeito a sua formação, pois sofria de uma moléstia nos olhos que quase a levou à cegueira. Apesar disso, descreve as brincadeiras com bonecas em companhia das negrinhas de sua idade e suas correrias no quintal em busca de frutas. Ou ainda, as horas divertidas que proporcionava a seu avô indo a seu aposento executar bailes pastoris com suas companheiras de folguedo.
Num outro momento demonstra a presença das negrinhas - como ela as chamava - na partilha dos bens do seu avô Pedro Ribeiro, e de sua tia Maria. De seus respectivos bens constavam escravos e terras, na divisão dos escravos eles interagiam pedindo clemência à sua mãe para não serem entregues a Manoel Paulino, casado com uma de suas tias já falecida e com dois filhos menores. Este era conhecido como um homem de coração duro com os escravos e apesar de cego, instigado pela mulher com quem vivia,
exercia castigos rigorosos, levando muitas vezes os escravos a implorar a proteção do seu avô. Essa cena tornou-se, na visão da autora, bastante comovente e a descreve: assisti então à cena repugnante da avaliação dos escravos, à qual eu não dei então a devida importância. Fiquei com as negrinhas em um lugar donde via o que se passava na sala em que se achavam.
Continua: no dia em que foram esses escravos levados, lembro-me de que também derramei lágrimas, não só por testemunhar a aflição desses infelizes e de minha mãe, como pela saudade de duas negrinhas minhas companheiras de folguedo.
Recorda ainda de uma mulatinha de sua idade (dez anos) com o nome de
Felicidade, destinada a ser sua ama de quarto. Esta, apesar da raça africana era mais branca do que ela e até loura7. Segundo a autora, um dos luxos das moças ricas daquele tempo era ter uma criada de quarto de cor branca. Talvez porque o quarto fosse um lugar muito íntimo para se admitir uma negra em tempos tão civilizados e higiênicos. O fato é que, a essa escrava, pressentida pelos seus pais como artifício para incentivá-la a estudar, permitiu-se que se tornasse sua companheira de estudos. Inclusive, admite que Felicidade levava grande vantagem na tabuada e ela na leitura. Pela descrição da aparência da sua ama de quarto entendemos por que esta teve o privilégio de estudar com sua sinhazinha, mantendo uma influência bem próxima na sua formação. Isto confirma a impossibilidade de separar completamente as linguagens das escravas e de sua senhora, sobretudo num
ambiente de engenho, onde fatalmente existia uma liberdade maior na formação das crianças.
No entanto, essas recordações não podem ser levados a ponto de se pensar em uma convivência isenta de conflitos entre senhoras e escravas. Existiam, na verdade, certos limites. No caso das memórias de Anna Ribeiro, sobre um determinado momento de sua adolescência, diz: não procurei brincar mais com as pequenas escravas. Suas conversações pareciam-me estúpidas e sem interesse; seus brinquedos ridículos. Deixei
a tagarelice e tornei-me séria.
Isso ocorreu no mesmo momento em que ela começou a refletir sobre as
conversas de sua mãe a respeito das virtudes da mulher, com a chegada de duas meninas da capital, filhas de um padre, que demonstravam um comportamento completamente diverso daquele encontrado no interior. Portanto, sua decisão em tornar-se séria vinha de uma influência dos bons fluidos da capital e da mulher civilizada.
Anna Ribeiro relata que sua mãe era uma mulher de destaque na Vila por ser relativamente ilustrada, ao contrário da maioria das senhoras de família que, depois de casadas, só se dedicavam aos misteres domésticos e, nas horas vagas aos trabalhos manuais. Portanto, apesar de ter sido criada num engenho, sua mãe sabia ler, o que não era comum na época. Essa distinção influenciou, decisivamente, na relação que estabeleceu com seus escravos. Essas foram descritas pela autora, como completamente gentis. Diz ela:
entre os nossos escravos, havia afeições sinceras e espírito de família, o
que não se dava com os escravos do cativeiro bárbaro, onde os sentimentos naturais pareciam asfixiados pelos maus tratos e humilhações .
Ela atribuía o procedimento de sua mãe com os escravos, não somente ao seu bom coração e a ter sido criada em uma casa onde eram os escravos tratados com humanidade, mas principalmente, à energia do seu caráter, que a levava a convicções inabaláveis, e acrescenta: naquele tempo em que o escravo era considerado um ser muito inferior ao senhor, acarretou-lhe isto algumas críticas de espíritos atrasados, até de pessoas de sua família, críticas que ela desprezava soberanamente.
Talvez a autora estivesse projetando para o futuro uma visão do tempo em que escreveu suas memórias, no início do século XX, quando não existia mais escravidão; ou, ao contrário, ela quisesse apenas relatar a humanidade e caridade de sua mãe, que representaria perfeitamente o modelo de uma mulher virtuosa no século XIX. No entanto, o que chama mais atenção é como difere a sua mãe das mulheres atrasadas. Ou seja, sua atitude era civilizada e ela não possuía apenas sentimentos, mas, sobretudo, convicções inabaláveis, o modelo de mulher da segunda metade do século XIX, momento em que as idéias liberais e humanitárias a favor do abolicionismo estavam em voga. Como sua mãe dominava a leitura e sabia conversar, possivelmente, estava a par dessas idéias que impregnavam os homens das letras, além das convicções religiosas que ressaltavam a caridade.
Enfim, D. Maria era uma verdadeira humanista. Anna Ribeiro relata que para convencer os outros ela repetia uma frase de Mistress Stowe em A cabana do Pai Tomás: ‘tratem-nos como cães, e eles procederão como cães’. Jamais empunhara uma palmatória ou um chicote para castigar seus escravos. O mais surpreendente neste relato é a citação que sua mãe fazia de uma frase do Dr. Lino Coutinho no seu livro Cartas para a educação
de Cora: Nada mais feio do que ver a mulher, que deve ser símbolo de clemência e de piedade, armada de instrumento despedaçador da carne humana, a corrigir impiedosamente um escravo indefeso.
Continuava: decerto repetia este trecho com o intuito de infundir-me horror ao papel de  carrasco, que algumas senhoras daquele tempo exerciam com garbo, para serem consideradas boas e enérgicas donas de casa 12.
Portanto, tratar mal seus escravos não estava de acordo com o modelo das
mulheres estabelecido pelas Cartas de Cora, assim como outras leituras utilizadas na formação das mulheres da elite daquele período.
Vamos conferir o que Lino Coutinho dizia a respeito da diferença entre mulheres e homens e suas relações com os escravas (os): da família de quem sois a natural governante, visto que o homem por sua educação, e mesmo talvez, por sua índole não é próprio para o trabalho doméstico; e já que por nossa desgraça, nos vemos na necessidade de ter escravos, convém muito que com eles vos mostreis humana e caridosa, ainda que senhora respeitada e obedecida.
Explicava que os escravos eram rebeldes, talvez por sua miserável condição, por isso serviam ordinariamente mal, e não cuidavam, como deviam, de suas obrigações, mas se tivessem uma educação quando pequenos e boçais, uma continuada vigilância, e hábito de fazerem as coisas, tornavam-se algumas vezes sofríveis, e mesmo bons. Sobre os castigos dizia: Os castigos corporais, que prodigamente lhes infligem alguns bárbaros senhores em vez de aproveitarem, ao contrário só servem de os fazerem indolentes e ruins: e nada é mais feio, aos olhos da razão e do sentimento, do que ver o belo sexo em cujo coração só deve reinar a paz e a humanidade, armado de instrumentos cruéis e despedaçadores para flagelar seus escravos.
O autor, estabelece uma diferença de gênero construída a partir da relação
senhor(a)-escravo(a), na qual, a formação da senhora dona de escravos deveria estar de acordo com o padrão civilizado da época, ou seja, ser humana e caridosa, reafirmando a apropriação da mulher para o trabalho doméstico, do qual seria natural governante.
Embora desde os sermões do Pe. Antônio Vieira houvesse a crítica aos maus tratos contra os escravos, a teoria humanista inspirada nos iluministas do século XVIII foi a inspiração decisiva no pensamento dos intelectuais daquela época. No caso de Lino Coutinho isto é notório pelas citações que faz de Rousseau.
O editor das Cartas sobre a educação de Cora, Gualberto Passos, concordava com Lino Coutinho acerca do tratamento que as mulheres deveriam dar aos escravos.
Para ele era repugnante ver escravos maltratados por suas senhoras, a quem aliás só cabem a docilidade, a brandura, a mansidão, e a clemência, atributos morais de seu sexo encantador. (...) Entendemos, como o Sr. Garret, que a força posta por Deus nos braços do homem está nos lábios e
nos olhos da mulher: nunca preponderam nossa inclinação para essas mulheres-homens: nunca despertou nosso entusiasmo nenhuma dessas heroínas que tiram descendência das guerreiras Amazonas,  e que  sendo
exceções raras do seu sexo, são por isso mesmo aberrações dos fins e das
leis da natureza.  Além de criticar as mulheres que utilizavam a força para castigar seus escravos, Passos atingiu também as heroínas, como a Alferes Maria Quitéria, que participou na campanha pela Independência do Brasil, e que, segundo ele, não merecia estar mencionada honrosamente nas Memórias Históricas do Sr. Coronel Ignácio de Accioli, pois entendia que “outro e bem diverso é o tipo que comporta a natureza, o caráter, a feminilidade, enfim, da mulher; são outras as glórias, diferentes os triunfos que lhe pertencem”.
A punição que as mulheres deveriam dar a seus escravos era diferente da dos homens e de acordo com a sua natureza. O Dr. Coutinho aconselhou sua filha sobre como punir escravos ao modo feminino. Recomendava: longe de vós minha Cora, semelhante desembaraço e ousadia, que é própria do homem (...), castigai-vos com penas morais, do que físicas, como seja, por exemplo, a privação do vosso agasalho, a diminuição da comida e vestuário, o aumento do trabalho, e por fim a prisão em quartos fechados, ou no tronco, principalmente se embebedaram, porque quase todos são inclinados para semelhante vício; e quando ainda assim se não queiram emendar, e se façam ao contrário, criminosos e incorrigíveis, vosso marido que se avenha com eles, e que os venda.
Percebemos que o editor, assim como o autor das Cartas, relacionam clemência, docilidade, brandura e mansidão como atributos próprios do sexo feminino. Ao contrário do homem, a quem Deus deu força nos braços, a mulher possuía força nos lábios e nos olhos. Para o homem, a força física era aceitável, pois a natureza e em última instância
Deus o fez apto a atos de grosseria. Quanto à mulher, segundo eles, a natureza determinava ser próprio do seu sexo a humanidade e a caridade, e portanto se ela fugisse desse registro tornar-se-ia uma aberração, uma anomalia da natureza infringindo suas leis e causando ameaça ao território masculino.
Gilberto Freyre, baseado em relatos de viajantes, refere-se também às senhoras da casa-grande. Para ele o fato de não terem contatos com o mundo que modificassem nelas, como nos rapazes, o “senso pervertido das relações humanas” e “sem outra perspectiva que da senzala vista da varanda da casa-grande, conservavam muitas vezes as senhoras o mesmo domínio malvado sobre as mucamas que na infância sobre as negrinhas suas companheiras de brinquedo.
Além disso, tomando como referência relatos de Koster, Fletcher e Kidder, do início e de meados do século XIX, atribui às senhoras brasileiras uma fala estridente e desagradável, com o hábito de falarem alto e sempre aos gritos dando ordens às escravas.
O que nos faz pensar nos relatos de Maximiliano de Habsburgo. Na Bahia de 1869 percebeu a mesma característica das negras nas ruas com uma voz alta e também bastante desagradável, talvez comportamento culturalmente característico do falar feminino. Mas afinal quem teria influenciado quem? A senhora ou as negras escravas?
Voltando a Freyre, encontramos nele uma sugestão de maior crueldade das
senhoras que dos senhores no tratamento dos escravos, um fato que, segundo ele, é confirmado pelos cronistas, viajantes, folclore e tradição oral, além das sociedades escravocratas de maneira geral, dando exemplo dos Estados Unidos. Cita casos de sinhás moças
que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Ou as baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos, e ainda outras que espatifavam o salto de botina nas dentaduras de escravas; ou mandavam lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas19. Como percebemos umas utilizavam da violência diretamente e outras indiretamente, como no caso de vender a escrava. No entanto, em
todos eles o motivo apontado por Freyre é o ciúme provocado pelas escravas às senhoras em relação ao marido, enfim o rancor sexual, a rivalidade entre mulheres.
Nos conselhos das Cartas de Cora o autor também nos dá uma pista de que existia ameaça à senhora e sugere uma solução pacífica para a relação que já previa violência.
Para ele: a imoralidade das escravas quer serviçais de rua, quer das que se conservam em casa, não pouco mortifica a uma senhora bem educada e virtuosa, e neste caso o melhor expediente é o de as casar logo com alguns dos vossos próprios escravos afim de as coibir, porque se fordes a vendê-las, como praticam algumas senhoras que conheço, nunca tereis quem vos sirva, visto que o tempo será pouco para as ensinar e instruir no serviço de casa, tendo logo que as vender, porque todas elas seguem a mesmíssima vereda.
A perspectiva de Freyre, que enfatiza a relação senhor-escrava de forma muito idílica vem sendo muito criticada pela produção historiográfica recente. Sônia Giacomini  aracteriza a relação senhor-escrava como estupro institucionalizado, ou seja, a mulher escrava era usada como objeto sexual. A autora argumenta, no entanto, que são as determinações patriarcais da sociedade que legitimam a dominação do homem sobre a mulher, alertando que essa utilização sexual da escrava não pode ser entendida como simples resultado da sua condição, mas também por ser mulher dentro de uma sociedade patriarcal. Nesta sociedade, a sexualidade possível à senhora branca era regulamentada pelas relações familiares e patriarcais, norteados pelos rígidos preceitos religiosos e morais. Enquanto que a sexualidade da escrava aparecia para o senhor livre de entraves e amarras de qualquer ordem, alheia à procriação, às normas morais e à religião, desnudada de toda série de funções que são reservadas às mulheres de sua própria classe, para ser apropriada num só aspecto, objeto sexual.
Partindo dessa concepção, Giacomini critica a análise de Freyre e os relatos de viajantes que exaltando a sensualidade da escrava invertem os papéis colocando o senhor como vítima, responsabilizando os atributos físicos da escrava negra ou mulata, a provocarem o desejo do homem branco e, conseqüentemente, causarem os ciúmes das senhoras. Para ela o fato da escrava ser usada sexualmente pelo senhor tem como motivo principal o fato de ser escrava. Nesse ponto a autora se contradiz com o que fala anteriormente, sobre a condição da escrava enquanto mulher, não leva em consideração algo concreto nas relações homens-mulheres, na qual a sexualidade, e nesse sentido a sensualidade ou vice-versa, poderia tornar-se um poder muito significativo naquela sociedade.
No processo de construção de gênero, algumas instâncias de poder são controladas pelas mulheres, como o espaço doméstico-familiar. Isso significa, no contexto do século XIX, o domínio do serviço doméstico e de seus componentes, incluindo a educação dos filhos e o controle dos escravos da casa, em sua maioria constituído de mulheres. Além disso, as senhoras também tinham que cumprir as obrigações no quarto do casal, ou seja, no território afetivo-sexual. Assim, a escrava tornava-se uma ameaça constante em relação às senhoras, e é principalmente neste ponto que ocorriam as reações violentas. As agressões físicas exercidas pelas senhoras atingiam as referências que elas, como mulheres, sabiam que comprometeria a sensualidade e o poder de sedução das escravas: os olhos, os seios, os dentes, as unhas, as orelhas etc. O poder afetivo-sexual, negado à senhora por questões morais e religiosas, poderiam ser utilizados pelas escravas, exercitando a sedução sobre seus senhores e ameaçando a posição da senhora como toda poderosa no espaço doméstico.
Concordamos com Giacomini que o estatuto de escrava e a cultura machista da sociedade patriarcal tornavam essa relação dominada pelo homem, mas o campo da sexualidade também poderia constituir-se em uma capacidade da escrava seduzir seu senhor, através de sua beleza, e assim tornar-se uma estratégia de sobrevivência.
Anna Ribeiro fala da beleza das escravas: havia entre as escravas, mesmo as do trabalho do campo, raparigas bonitas, que se vestiam com certo luxo, à moda das crioulas baianas, e que dançavam primorosamente o lundu (...). As raparigas mais ousadas topavam até nos convidados mais graduados e nos próprios senhores que não se davam por ofendidos com esta liberdade.
Ou ainda, poderíamos relatar a admiração de Maximiliano de Habsburgo logo que chegou à Bahia: uma mulher, em especial, despertou-nos atenção, por sua figura incomum.
Vestia um traje pitoresco e admirável das negras brasileiras, o qual ainda
possui reminiscências da longínqua pátria oriental. (...). A mulher de quem
acabei de falar e que reinava, vaidosamente, no meio do grupo, tinha um
pescoço e umas costas que honrariam o imperador Vitélio. O busto bem
desnudo encontrava-se em perfeita harmonia com todo conjunto exuberante.
Toda a figura exótica era, contudo, sob certo aspecto, esplêndida, devido ao
brilho aveludado e à cor bronzeada da pele. A mulher expressava a própria
convicção disso através de um sorriso de muita satisfação.
Esta citação não significa que o viajante via aquela mulher com os mesmos olhos que contemplava as brancas, como ele mesmo disse, era exótico, mas ainda assim belo, e essa beleza, da qual a negra tinha convicção poderia ser utilizada por ela para resistir e sobreviver naquele mundo preconceituoso e escravista. Portanto, a escrava chamada de imoral era, na verdade, uma ameaça constante ao domínio da senhora.
No entanto, não era apenas uma relação de violência que se estabelecia entre senhoras e escravas. Estas últimas, quando bem comportadas, eram sempre muito elogiadas. Nas memórias de Anna Ribeiro há o caso de Marciana: “um tipo das mais sólidas virtudes. Honra, bondade e dedicação, tudo possuía em subido grau (...). Por sua honestidade e nobres sentimentos, além da alforria, mereceu ser considerada como membro da família”. Ou ainda, o caso da sua ama-seca Geralda, muito semelhante a
Marciana, e que segundo comentário de uma jovem de sua família teria por engano da natureza saído mulata e escrava. Dizia não conhecer senhora branca de sentimentos mais elevados. As escravas da casa, geralmente mais velhas, traziam mais possibilidade de adquirirem uma certa intimidade sendo seduzidas e seduzindo, a ponto de serem aceitas como membros da família, no entanto isto só acontecia se elas não ameaçassem o
poder da senhora.
As lembranças de sua vida no campo revelam relações bastante próximas entre sua mãe e as escravas, principalmente durante as atividades de costura. Conforme sua recordação: recordo com prazer ver minha mãe sentada em uma cadeira baixa, em frente de uma almofada de renda, pousada em um estrado onde as escravas trabalhavam (...). As escravas, ali sentadas, faziam renda ou coziam, tendo ao lado o balaio com os utensílios de costura ou pedaços de fazenda com que confeccionavam peças de vestuários. Minha mãe falava-lhes benevolamente, muitas vezes contando-lhes histórias, quase sempre tiradas da bíblia, em que era muito versada25.
A caridade de sua mãe estava marcada pela religião que, tendo como referência a Virgem Maria, criava a imagem da mulher pura, caridosa e submissa. A costura era uma habilidade indispensável para as mulheres prendadas daquele período. Segundo a autora,
algumas meninas já aos sete anos, quando não destinadas ao aprendizado das primeiras letras, aplicavam-se a trabalhos manuais: costuras de chãs, bordados e rendas, atividades às quais eram também destinadas as pequenas escravas, que para isto, eram entregues às costureiras da casa ou às agregadas.
A sala de jantar era a mesma de costura. Havia ali o estrado, indispensável em todas as casas, no qual, logo pela manhã, se achavam sentadas as costureiras e rendeiras com as almofadas e os competentes balaios contendo os utensílios de costura e as peças do vestuário em confecção. Este local, para Anna Ribeiro, em outras residências era muito triste porque junto dele estava uma senhora com ar severo sempre a repreender ou castigar a escrava que errava o trabalho. Mas em sua casa tornava-se um momento muito aprazível. As escravas, que nas outras vivendas não ousavam erguer os olhos para a senhora, falavam dessassombradamente à sua mãe, “pedindo-lhe explicações sobre qualquer coisa, e ela dava-lhes benevolamente, expressando-se de modo a fazer-se compreender. Se alguma se mostrava indolente ou descuidada, advertia-a sem aspereza”.
A mãe de Anna Ribeiro, pela sua narrativa, realmente mostrava-se uma senhora que estava de acordo com o modelo que tanto Lino Coutinho aconselhou à sua filha.
Infelizmente, não pudemos constatar se suas idéias serviram na relação que Cora estabeleceu com suas escravas, mas, de acordo com as memórias de Ribeiro, podemos dizer que era uma relação possível. Na convivência cotidiana negociavam e criavam espaços de sociabilidade. No entanto, ela não escapou das críticas das senhoras da época, uma das quais dizia: “ela não pode ser respeitada pelas escravas, porque conversa e ri amigavelmente com elas”, e sua mãe respondia: “eu sou talvez mais respeitada do que ela
com os seus rigores e, demais, que costumo agir de acordo com minhas convicções e assim continuarei a proceder”.
Esta citação demonstra que na micropolítica da vida diária não era tão tranqüila a
utilização das normas pacíficas para lidar com os(as) escravos(as). Existia na verdade uma tensão entre as senhoras malvadas e as redentoras, constatando o quanto a relação senhora-escrava(o) era eivada de conflito. Mudavam apenas os estilos de negociação, controle e punição.
Em outros momentos percebemos que senhora e escrava trocavam informações e não eram apenas as histórias bíblicas compartilhadas entre elas. A mãe de Anna Ribeiro chamava as raparigas da casa, as crias, que eram em grande número, e iam a Mucungo (um sítio) colher frutas e o que mais houvesse. Ela descreve esse momento dizendo que “na volta, as negrinhas vinham cantando qualquer chula, e eu fazia coro com elas e corria e saltava alegremente. Ou ainda, quando recorda uma festa de reisado em sua casa, em que passado o almoço, os homens formavam grupos nas varandas, na sala de visitas, e as senhoras nas salas interiores e nos quartos. (...) Lembro-me de ter visto em um desses grupos uma parda, que viera em companhia de Antônio dos Santos, relatar um fato ocorrido não há muito tempo na elite da sociedade baiana, e eu, que já apreciava um tanto as narrações sensacionais,
vim fazer parte do auditório que rodeava a mulata pernóstica, a qual muito se ufanava de haver sido criada na Capital da Bahia30.
Não fica claro na descrição de Ana Ribeiro se a parda era ou não escrava, ou se ela acompanhava o senhor Antônio como escrava ou como esposa, mas o que podemos perceber é que ela compartilhava das conversas entre as senhoras ricas do Recôncavo.
Aquilo que estamos habituados a chamar de fofocas, geralmente como um atributo feminino, na verdade era o momento em que elas se solidarizavam, contando suas experiências ou dos outros. O momento em que afirmam sua identidade enquanto grupo, pois como vimos elas separam-se em um grupo distinto dos homens para ficarem mais à vontade, ou seja, para contarem segredos que só são revelados quando estão entre iguais.
No entanto, nesse grupo de iguais tinha a presença de uma parda, revelando a complexidade dessas relações.
Apesar de não podermos afirmar com certeza as diferenças de gênero nas relações senhor(a)-escrava(o) por não termos feito um estudo mais aprofundado, podemos ressaltar, como disse Bellini, que: o escravo não aparece no papel de vítima passiva, sem qualquer autonomia para viver sua vida, ou como alguém cuja obediência é mantida exclusiva e principalmente pelo chicote, (...) o vemos sabendo seduzir, tornar-se cúmplice dos senhores, aproveitando oportunidades e locomovendo-se taticamente no sentido de tornar a sua vida a melhor possível.
As senhoras que possuem o poder de alforriar seus escravos, ainda que
geralmente quando viúvas, também seduzem, como vimos com a mãe de Anna Ribeiro que era disputada pelos escravos na hora da partilha, ou no caso de sua tia Maria que antes de morrer deixou esta solicitação à irmã: “Peço a você e a Pedro que, se eu morrer, alforriem Josepha que, além de haver sempre me servido bem, foi de extrema dedicação nos meus últimos trabalhos, velando todas as noites ao pé de mim”.
Josepha não era obrigada a velar por sua senhora, e no entanto o fazia. Apesar desta ser uma atitude que revela sujeição e baixa auto-estima, pode ser vista também como uma espécie de solidariedade entre mulheres. A conquista era mútua e a partir dela estabelecia-se as negociações, não esquecendo que esta perpassava por relações de poder.
Portanto, no contexto da escravidão, era possível a construção de cumplicidades de gênero. A senhora não era sempre má ou redentora, ela estava o tempo todo ameaçada pela sua face antagônica.
De acordo com Joan Scott, “como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas, o gênero implica em primeiro lugar, os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (e com freqüência contraditórias)”. Assim, os conceitos normativos das Cartas sobre a educação de Cora e do relato autobiográfico das Memórias de Anna Ribeiro reproduzem o sentido simbólico de mulher, tomando uma oposição binária que naturaliza sem equívocos o sentido de masculino e feminino. O feminino sempre representado de duas formas: ou a imagem da mulher caridosa e humana, ou malvada e perigosa, fosse ela senhora ou escrava. Portanto, ao mesmo tempo em que não podemos reproduzir a imagem das senhoras apenas malvadas e inimigas de suas escravas, não podemos, também, entendê-las
isoladamente, a imagem de umas sempre está construída como reflexo das outras.”


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