sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

AVULSO- PATERSON

                SINCERO AGRADECIMENTO AOS AVULSO- JOHN LITERWWOD PATERSON

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PATERSON 

    Conferência pronunciada na Academia de Medicina da Bahia


                                              Geraldo Leite
                                                        

No momento em que a Academia de Medicina da Bahia comemora seus vinte e cinco anos de profícua vida científica e cultural, registram os anais da nossa terra outra efeméride igualmente grata a todos quantos vivem e fazem a medicina baiana. Refiro-me ao transcurso do primeiro CENTENÁRIO da morte de PATERSON ocorrida nesta cidade do Salvador, em 09 de dezembro de 1882.

O ilustre clínico e tropicalista serviu com desprendimento à terra que o recebeu nos idos de 1842 e a amou de modo impertubábel, com todas as forças do coração e da inteligência, por mais de quarenta anos.

O seu labor, tão árduo e brilhante quanto desinteressado, deu à Bahia projeção internacional e sedimentou as bases da tropicologia americana.

A Academia não poderia deixar passar despercebido fato tão extraordiná­rio, motivo pelo qual registramos nestas páginas a efeméride que assinala o transcurso dos primeiros cem anos do passamento de um grande médico e - mais do que isto - um grande homem!

"A história da medicina em nossa terra" - disse Antonio Caldas Coni ­"não se resume na história da sua instituição oficial, a por todos os títulos gloriosa Faculdade de Medicina. Dela escreveram páginas vivas e de inexorá­vel brilho médicos que não tivessem cátedras, sobressaindo os da tríade fulguran­te, passados já à História como verdadeiros fundadores da medicina experimen­tal no Brasil". Referia-se Caldas Coni aos Drs. OTTO WUCHERER, PATERSON e SILVA LIMA, três clínicos e pesquisadores estrangeiros que transformaram a medicina brasileira. WUCHERER, seu patrono no Instituto Bahiano de História da Medicina; PATERSON, meu ilustre patrono naquele Instituto e SILVA LI­MA, português pelo nascimento e brasileiro pelo coração, no mesmo Instituto representado pelo confrade Antonio Jesuíno dos Santos Netto. Três homens incomuns, três personagens ilustres, três iluminados que aqui, na Bahia, em plena época do animismo pré-pausteriano, professaram a mais pura, a mais cien­tifica e a mais nobre medicina, não somente do Brasil mas de toda a América Latina!

OTTO WUCHERER foi, por todos os motivos, uma figura extraordinária. Ao longo de mais de vinte e cinco anos o grande clínico, pesquisador e higienis­ta viveu entre nós. Inicialmente, ao lado de PATERSON e - a partir de 1852 - ao lado de PATERSON e SILVA LIMA, escreveu páginas gloriosas e emocionan­tes, páginas de incomensurável valor. Aqui enfrentou a epidemia da febre amare­la, cujo diagnóstico esclareceu. Ditou normas, defendeu princípios, impôs argu­mentos e transformou sua própria casa em hospital. Lutou com tanto heroísmo que a muitos pareceu ser imune ao vírus amarílico. Certo dia disse, amargurado, a SILVA LIMA: "Fechei a minha casa, onde tinha enfermaria. Entraram lá vinte doentes de febre amarela e saíram vinte e um cadáveres, incluindo o da minha esposa!".

Precisarei recordar tais fatos? Precisarei relembrar outras passagens igualmente gloriosas da vida de OTTO WUCHERER, tais como a da batalha contra o cólera morbus, a do estudo dos ofídios brasileiros, a da etiologia da hipoemia tropical, e da descoberta das microfilarias e tantos outros? Certamente não, pois outros já o fizeram. Calar todavia, falar de PATERSON sem recordar WUCHERER e SILVA LIMA, é tarefa ingrata, deselegante.

Como - de igual modo - evitar, neste curto ensaio, a figura de SILVA LIMA? Daquele SILVA LIMA que deixou a nossa vetusta Faculdade trazendo na alma e no coração a essência mais pura do mais requintado ESPÍRITO BERTHEZIANO? O jovem médico era "um vitalista confesso, de cujas especula­ções metafísicas estão cheias as páginas brilhantes da sua tese de doutoramento" (CALDAS CONI). Recordo-me perfeitamente do carinho e do entusiasmo com que CALDAS CONI descrevia o trabalho inaugural de SILVA LIMA, por ele rebuscado na biblioteca da nossa tradicional casa de ensino. De fato, sofreu a velha Faculdade do Terreiro de Jesus profunda influência da doutrina de BARTHEZ e a transmitiu aos médicos nela graduados. WUCHERER e PATER­SON, ao contrário, praticavam fora da Faculdade, porque ao seu corpo docente jamais pertenceram, uma medicina renovada, tendo por base o cadáver e por objetivo último e verdadeiro uma ciência nova, capaz de dirimir todas as dúvidas: a anatomia patológica! Bem cedo verificou SILVA LIMA quão frágil eram os princípios da escola oficial. Viu, por exemplo - dentre outras coisas - que os parasitos não eram conseqüências e sim causas das doenças mais comuns que castigavam - e ainda castigam - esta parte do mundo. E assim, de descoberta em descoberta, de convicção em convicção, baldeou do animismo para a ciência experimental, aderindo de corpo e alma às idéias de WUCHERER e PATERSON.

Unindo-se aos arautos do pensamento anglo-saxônico, eminentemente científico, SILVA LIMA "integra-lhe o grupo, para constituir, fora do âmbito oficial, naquela segunda metade do século dezenove, a famosa ESCOLA TROPICALISTA DA BAHIA, que mudou a face da medicina brasileira e fez descobertas de interesse mundial no campo da trópico-patologia" (IBIDEM).

Não é possível dissociar as vidas de PATERSON, WUCHERER e SILVA LIMA. Tentar fazer o estudo biográfico de um é deixar-se envolver pelas lutas e atividades dos outros dois. Eles se entrosam e se completam, valendo cada um deles, no dizer de AFRÂNIO PEIXOTO, "uma Faculdade inteira!”. CALDAS CONI, aqui tantas vezes citado, assim os definia: "Símbolos do movi­mento que criaram, encaramo-los como unidade histórica, porque qualquer deles é isoladamente um instrumento que fica inerte e sem valor. Dir-se-ia que nasce­ram para juntos viverem e trabalharem, no mais edificante exemplo do quanto vale o espírito da mais abnegada cooperação. Na fase por excelência produtiva de suas vidas, sempre atuaram sinérgica, sincrônica e simbioticamente!”


PATERSON nasceu em 14 de setembro de 1820, no condado de ADERBEEN, na Escócia. Desde cedo demonstrou profundo interesse pela língua e pela literatura latinas, as quais dominou muito bem. Os estudos subseqüentes, de natureza diversificada e humanística, possibilitaram sólida base para o seu curso médico, realizado na Universidade local. O grau de doutor foi-lhe outorgado em 29 de abril de 1841. Logo depois rumou para Londres levando no coração o desejo de ser membro do Real Colégio de Cirurgiões. Enquanto aguardava o exame necessário, ainda convalescente, enfrentou a banca examinadora e conquistou, com galhardia, o almejado título. Freqüentou hos­pitais, privou com os mais notáveis professores londrinos e quando se conven­ceu ter aprendido o bastante, foi a Paris com o objetivo de beber na fonte mais límpida, a medicina mais pura e atualizada. Na capital francesa tomou contato com grandes figuras da profissão. Partiu depois para a Suíça, Itália e Áustria, procurando colegas ilustres e hospitais famosos, os quais, na sua opinião, “eram escolas vivas e permanentes de ensino prático e perenes fontes de conhecimento”: Em 1842, depois de voltar à terra natal e desfrutar por certo tempo o alegre convívio paterno, tomou o primeiro navio e rumou para o Recife. Ali não encontrou ânimo para maior delonga, seguindo para a capital da Paraíba onde iniciou sua vida profissional.

Quando percebeu que a Clínica começava a se tornar estável e promissora, teve de renunciar e vir para a Bahia, a fim de socorrer seu colega e irmão mais velho, o Dr. ALEXANDER PATERSON, que estava incapacitado de continuar à frente de sua clínica, resolveu PATERSON permanecer ao seu lado. Subme­teu-se ao exame de suficiência e de verificação de título, na Faculdade de Medi­cina sendo aprovado em 07 de novembro de 1842. Obtida a licença para o exer­cício legal da profissão, assumiu os compromissos do Dr. ALEXANDER PATER­SON, isto é, o de médico da colonia inglesa e de um pequeno hospital, com dis­pensário, que era ao mesmo tempo sua residência e no qual eram recebidos os tripulantes da marinha britânica. A manutenção do nosocômio era fruto das contribuições dos súditos ingleses radicados na Bahia e do próprio Cônsul, bem como de taxa especial, paga pelos navios daquela bandeira que freqüentavam nosso porto.

Foi localizado de início no Garcia passando depois para o Campo Grande, mas por ocasião da chegada do Dr. JONHN PATERSON dito hospital funcionava na Rua da Alegria, nos Barris. Mais tarde PATERSON o adquiriu e nele residiu até a morte, sendo por isto conhecida, durante muito tempo, como a "Casa do doutor inglês".

À clientela dos seus compatriotas somou PATERSON a da população em geral e de tal modo o fez que, segundo afirmação de SILVA LIMA, "com o andar do tempo chegou, em extensão e trabalho, a proporções verdadeiramente assombrosas e nunca vistas nesta cidade". No dizer do grande médico lusitano, "o Dr. PATERSON continuava aumentando a obra criativa começada pelo seu irmão, como seu sucessor, também na clínica dos pobres, que já então sabiam o caminho da casa do doutor inglês, onde afluíam em grande número todas as manhãs".

Bem cedo conquistou a estima e o respeito do povo e da classe médica, graças não somente à sua alta qualificação como também aos dotes pessoais de fino cavalheiro e de culto homem de letras.

Em 1849, quando a Cidade do Salvador foi invadida por notável epidemia, o governo provincial convocou ao palácio os facultativos mais qualificados, dentre eles incluindo WUCHERER e PATERSON. A contribuição de ambos foi decisiva. Para eles a epidemia era de febre amarela a tal afirmativa contrariava o parecer não só do Conselho de Salubridade como o da classe médica em geral e o da maioria dos professores da Faculdade de Medicina.

A repercussão foi muito grande e abalou de tal modo a opinião pública que o Presidente da Província convocou nova reunião. Nesta, como na primeira, PATERSON sustentou que a doença reinante era a febre amarela, afirmando com toda segurança: "A moléstia primeiro chegará a Pernambuco ou ao Rio de Ja­neiro, a alguns graus de distância, do que ao morro de São Paulo, a algumas léguas apenas". Em outras palavras queria dizer PATERSON que a epidemia "mais depressa haverá de seguir o caminho das mais freqüentes e rápidas comu­nicações comerciais do que a corrente dos ventos". A profecia foi realizada, pois a 18 de dezembro a febre amarela chegou ao porto do Recife, e a 27 ao Rio de Janeiro. A partir de então a afirmativa de PATERSON e de WUCHERER ganhou adeptos e o combate pôde ser organizado. PATERSON escreveu páginas memo­ráveis de abnegação e desprendimento, atendendo - dentro e fora do seu peque­no hospital - incontável número de doentes, ao tempo em que dava conselhos sobre medidas higiênicas, de acordo com sua opinião pessoal, do seu irmão e de WUCHERER, bem como de outros colegas já filiadas às suas convicções.

Menos de seis anos depois, isto é, em 1855, quando a febre amarela ainda reinava de modo endêmico, surgiu nova epidemia na Cidade do Salvador. O Go­verno, tal como em 1849, convocou os principais médicos e professores da Faculdade, em busca de conselho. Mais uma vez PATERSON emitiu opinião contrária à da maioria, afirmando ser cólera morbus o mal reinante. Nova oportunidade teve a Bahia de se beneficiar com o espírito humanitário e carita­tivo do grande médico: O Imperador D. Pedro II tocado pela espontaneidade e pelo desprendimento do "médico inglês", agraciou-o com o título de Cavalhei­ro da Ordem da Rosa, ainda acrescido, posteriormente, com a promoção aos graus de Oficial e Comendador.

"Até 1857 - relata SILVA LIMA - o Dr. PATERSON não tinha família. Vivendo só, consagrava o seu tempo e a sua atividade aos seus doentes e aos seus estudos, em proveito próprio e deles. Raríssimas vezes era visto na sociedade, mesmo na dos seus compatriotas. Em público só era encontrado no trabalho, quase sempre a cavalo, de dia e de noite, a correr, ao sol e à chuva, em toda a parte, e a toda hora".

A sua faina começava cedo, quase sempre pela alta madrugada. "Depois de infalível banho frio de imersão começava a consulta matinal, quase sempre à luz do gás. Ao cabo de duas horas, ou pouco menos, interrompia o exame dos doentes, pela maior parte de pobres, e despedia os restantes até o dia seguin­te". Prossegue SILVA LIMA: "Depois de uma refeição ligeira montava à cavalo, fazia as suas visitas até as duas horas da tarde; depois de um jantar frugal saía outra vez, e voltava á casa à hora incerta da noite, e às vezes tão tarde e tão fatigado que caía a dormir vestido, em uma cadeira de descanso, durante as três ou quatro horas que lhe restavam para repouso. Não raro era interrompido por chamadas de urgência. Houve tempo em que ele se viu obrigado a ocultar-se em outra casa, a alguma distância da sua, nas noites em que lhe era absolutamente necessário estudar ou dormir em liberdade. Algumas vezes notavam os colegas nas conferências, que afrouxando um pouco a conversação, ou não tendo ele de falar, caíam-lhe as pálpebras, irresistivelmente vencidas por uma sonolência inoportuna". Para atender atividade tão exaustiva e incomum, "era-lhe preciso ter prontos e à mão pelo menos três cavalos, para fazer as mudas necessárias ao serviço do dia e da noite".

Em meio a tão trepidante existência desposou PATERSON, em 1857, Miss Caroline Mary, nascida no Rio de Janeiro. Embora casado, em nada mudou seus hábitos, horários e costumes, contrariando a expectativa das pessoas mais íntimas. No dizer de SILVA LIMA, PATERSON "achara o meio de conci­liar, sem prejuízo para nenhum deles, o amor da família e os novos encargos que ela lhe trazia, com o amor da sua profissão e os interesses da sua clientela". A única alteração que fez foi circunscrever a área de sua clínica, eliminando alguns bairros mais afastados da cidade, situados à grande distância de sua residência, e isto por ser materialmente impossível desempenhar com assiduidade os deveres de médico assistente. Nunca se recusou, todavia, a levar aos colegas dos referidos bairros o seu auxílio, quando solicitado.

O pequeno hospital que ele dirigia começou por esse tempo a sofrer pro­gressivo retraimento daqueles que o sustentavam porque súditos ingleses, Cônsul e capitães de navios contribuíam de modo espontâneo. Mesmo assim PATERSON o conservou até quando pôde, mantendo-o à sua custa. Até o final de sua vida sua casa foi um abrigo para os pobres; ele os atendia e medicava, fazia operações gratuitas, pegava medicamentos e os auxiliava dando dinheiro para o sustento.

Nos doze anos que se seguiram ao casamento permaneceu PATERSON nessa trepidante atividade, e a partir de 1865 instituiu amigáveis e interessantes palestras noturnas em que, duas vezes por mês, tomavam parte WUCHERER, ANTONIO JOSE ALVES, JANUÁRIO DE FARIAS, PIRES CALDAS, SILVA LIMA, PACÍFICO PEREIRA, SILVA ARAÚJO, ALMEIDA COUTO, HALL, SANTOS PAIVA, VITORINO FREIRE, LUDUGERO FERREIRA, MAIA BITENCOURT e ALMEIDA MAROUES. Nestas conversações periódicas eram apresentados "casos clínicos ocorrentes, exames microscópicos e oftalmológi­cos, inspeção de algum doente afetado de moléstia importante ou questões e novidades científicas concernentes à profissão ou de algum modo relacionadas com ela". "Foi nestas palestras noturnas por diversas vezes interrompidas e re­começadas - diz SILVA LIMA, "que apareceu e se fez por obra, em 1866, a idéia da publicação da nossa GAZETA MÉDICA, que tão bons serviços tem prestado à profissão e à literatura médica brasileira. Foi ali que sucessivamente foram objeto de conversação e de estudos micrográficos a hipoemia intertropi­cal (opilação ou cansaço) e as suas relações com o Anaylostona duodenal de Dubini, a hematoquilúria e a filaria aqui primeiro descoberta por WUCHERER nas urinas quilosas e depois, independentemente, em 1872, nas Índias Orientais, achado também no sangue humano por LEWIS, cujo represen­tante adulto feminino foi alguns anos mais tarde, em 1876, encontrado por BANCROFT, na Austrália. Foi ali, finalmente, que por muitas vezes veio à tela da discussão a singular moléstia que desafiava a sagacidade dos médicos da Bahia, e que se achou ser, idêntico ao beribéri indiano, descoberto há mais de dois séculos por BONTIUS, e se ventilaram muitas outras questões de interesse geral, ou particularmente utilizáveis em suas aplicações práticas à medicina ou à cirurgia".

Ao fim de quase três decênios de tão inestimáveis serviços prestados à Bahia e ao Brasil, sentiu PATERSON necessidade de algum repouso que nenhu­ma outra terra poderia dar senão aquela em que ele nasceu. Resolveu partir para a Escócia, deixando em seu lugar seu sobrinho, ALEXANDER PATERSON JÚNIOR, graduado recentemente pela Universidade de Edinburgo. Antes de seguir viagem para a Europa visitou algumas cidades do interior e de outras províncias. Relata seu biógrafo que tal excursão "foi extremamente penosa por causa das dificuldades de viajar à cavalo, por maus caminhos em uma estação excepcionalmente seca; além disso os seus movimentos eram retardados por uma multidão de enfermos que de toda a parte afluíam a consultá-lo, e aos quais ele não deixou de atender até o último momento". Visitou Alagoas, Pernambuco e o Rio de Janeiro e ao regressar foi homenageado pela colônia inglesa.

Fixou residência na Europa mas nunca esqueceu a Bahia e o Brasil. O Imperador D. Pedro II quando foi à Escócia o visitou, em Edimburgo e o tomou como guia. Em 1873 PATERSON voltou à Bahia para rever amigos e cuidar de negócios, permanecendo em Salvador alguns meses. Mais uma vez demandou à Europa, regressando à Bahia em 1876, quando reassumiu sua clínica, indo seu sobrinho, de muda, para o Rio de Janeiro. Três anos depois deixou o Dr. HALL em seu lugar e visitou novamente a Escócia. Aos 62 anos de idade era um aluno diligente que, com o mesmo interesse de um jovem, procurava os grandes mestres e os grandes centros do velho mundo para aprender a ciência mais pura e requin­tada. Foi assim, em plena velhice, discípulo de LISTER, SPENCER, DUNCAN, TURNER, CHINE e outros.

Finalmente, em 1882, sentiu mais uma vez saudades da Bahia e atravessou o Atlântico para voltar à sua clínica privada, "sempre a mesma atividade, os mesmos hábitos de vida, o mesmo vigor de inteligência, a mesma facilidade de compreensão diante dos casos clínicos ocorrentes, a mesma presteza em abranger num relance as indagações imperativas adequadas às emergências; memória pron­ta, segurança, destreza e impertubalidade nas operações cirúrgicas; era finalmen­te - diz SILVA LIMA - o mesmo homem que sempre conhecemos, nós todos que de perto lhe apreciávamos as aptidões e as qualidades, quer nas lides profis­sionais, quer nas relações calmas e íntimas da amizade".

Embora com a saúde abalada, não suspeitava o extraordinário médico quão próximo estava o seu fim. A 9 de dezembro de 1882 viveu a Bahia um dia muito triste para a medicina. SILVA LIMA relata assim: "Depois de jantar cedo, como costumava sempre, e de algum descanso, montou à cavalo à tarde, nas melhores disposições, e foi visitar um doente na povoação da Barra, em frente ao farol. Era um caso grave que ele via desde algum tempo. O doente estava sentado na cama e o Dr. PATERSON sentou-se também em uma cadeira, adiante e um pou­co ao lado dele; depois de o ter examinado detidamente, conversava sobre o estado de sua moléstia, e sobre a conveniência de ouvir a opinião de outro colega; e nomeou para a conferência, no dia 11, aquele a quem agora cabe o triste encargo de narrar com os atos da sua vida, o melancólico epílogo que a fechou para sempre. Neste ponto da conversação, o Dr. PATERSON calou-se de repente. Imóvel, com o rosto voltado para uma janela que dava para o mar, fixou a vista sobre o so1 poente por pouco mais de um minuto, e caiu súbito para o lado da cama, com a cabeça entre os travesseiros. Colhera-o a morte de surpresa no seu posto de honra, e no meio da quase divina tarefa de servir e socorrer a humanidade!".

"O Dr. PATERSON morrera à grande distância de sua morada. Os habitan­tes da estrada da Vitória, que pela tarde o viram passar à cavalo, foram no come­ço da noite dolorosamente impressionados por um tristíssimo espetáculo. Ele passava outra vez para casa, mas inanimado, conduzido aos ombros de quatro homens, acompanhado por alguns poucos amigos, que pelo caminho iam saben­do da infausta nova. Atrás deste fúnebre cortejo ia a passo lento, o seu cavalo" (IBIDEM).

"A notícia do triste acontecimento espalhou-se com grande rapidez, surpreendendo penosamente os amigos do falecido e toda a população. Foi imenso o concurso de pessoas de todas as classes que nessa noite foram Infor­mar-se do inesperado sucesso, que ecorada por toda a cidade com a repercussão de um grande desastre" (SILVA LIMA).

"O funeral do Dr. PATERSON, no dia seguinte, foi o mais Importante que tem visto a Bahia há longos anos. Tornou-se um funeral público. Os ofícios foram celebrados na capela inglesa, do Campo Grande, que estava literalmente coberta de povo.

Assistiram à cerimônia grande número de compatriotas, colegas, professo­res da Faculdade de Medicina, amigos, clientes e outros cidadãos de todas as classes e nacionalidades. Ao terminarem os ofícios, e no momento em que saía o féretro da capela para ser depositado no carro mortuário, a multidão que esta­va fora precipitou-se de súbito para a porta, e apoderou-se à força do ataúde para o levar, à mão, até o cemitério, à ladeira da Barra. Apesar da intervenção do Cônsul inglês e de outras pessoas, o povo não desistiu do seu intento, alegando que aos pobres que perdiam no Dr. PATERSON um amigo e um pai, ninguém teria a crueldade de impedir aquela homenagem de reconhecimento, a última e única que eles, como filhos e como pobres, lhe podiam prestar".


Quatro anos após tão infausto acontecimento, médicos, magistrados, ne­gociantes e pessoas outras de diversas nacionalidades inauguraram, com o auxílio da população, um monumento à memória de PATERSON.

"A GAZETA MÉDICA DA BAHIA" relata assim: "No dia 13 do corrente (dezembro de 1886), realizou-se a inauguração do monumento erigido nesta capital à memória do benemérito clínico Dr. J.L. PATERSON, por subscrição popular, promovida por alguns dos seus amigos, colegas e antigos clientes. O monumento é de granito da Escócia; o pedestal é uma fonte quadrangular, de água potável, sobre a qual assenta o busto do ilustre médico, em mármore de Carrara, debaixo de uma cúpula piramidal, sustentado sobre quatro elegantes colunas, por uma linda moldura com medalhões, em que se acham gravadas as inscrições que comemoram o preito de gratidão, rendido à memória do humani­tário clínico, pela população da cidade".

"No dia marcado para a inauguração" - diz a GAZETA MÉDICA DA BAHIA - "o largo da Graça esteva adornado de bandeiras e festões de flores e ao lado direito do monumento, coberto de flores e grinaldas, erguia-se um espaçoso pavilhão, no qual à hora comunicada para a cerimônia, foram recebidos pela comissão promotora da solenidade, S.Exa. o Sr. Conselheiro Presidente da Província, o General Comandante das Armas, o Monsenhor Provisor do Arcebis­pado, uma Comissão da Câmara Municipal com seu digno Presidente, diversas comissões representando a Faculdade de Medicina, a imprensa, o ensino superior e grande número de senhoras, médicos, magistrados e negociantes".

"A convite da Comissão. S.Exa. o Presidente da Província começou a cerimônia da inauguração, dando a palavra ao Dr. SILVA LIMA que, como presidente interino da comissão promotora, na ausência do Cônsul da S.M. britânica, agradeceu em eloqüentes frases a todos os que concorreram para a ereção do gracioso monumento, e entregando-o à municipalidade pediu que ela velasse pela sua conservação" (lBIDEM).

"Ao terminar a sua tarefa" - disse SILVA LIMA - "a Comissão renova os seus agradecimentos à ilustríssima Câmara Municipal, e, em seu próprio nome, e no de todos os cidadãos que conservam indeléveis às gratas recorda­ções do benemérito PATERSON, pede-lhe um favor: que aceite, e tome sob sua guarda e proteção o monumento consagrado aqui à memória daquele a quem os desvalidos desta terra chamaram de pai, e que, sendo o ornato de uma praça pública, é também a expressão do reconhecimento dos contemporâneos para com o homem que soube louvar o seu nome, a sua profissão, a classe médica da Bahia, e, ilustrou uma época memorável da história da medicina brasileira". "Em resposta o Presidente da Câmara, aplaudindo o ato de justiça promovido em homenagem à memória do ilustre facultativo, declarou que a Câmara Munici­pal, aderindo a este juramento não somente tinha em mira interpretar os senti­mentos da cidade hospitaleira que se desvanece de honrar ao estrangeiro honesto e laborioso que se dedicou ao bem estar e progresso desta terra".

"Em seguida os Presidentes da Província e da Câmara Municipal descerra­ram, ao som do hino brasileiro, o véu de gaze e flores que cobria o busto do Dr. PATERSON, e foi executado hino inglês".

A solenidade teve prosseguimento com discursos proferidos por outros ora­dores. O Prof. VITORINO PEREIRA falou em nome da Congregação da Facul­dade de Medicina. São do ilustre mestre as seguintes palavras: "A instituição que represento teve no Dr. PATERSON, além de um modelo de saber e de virtudes, um auxiliar intrépido e esforçado. As transformações que o ensino médico vai sofrendo, e que preparam-lhe, após as lutas de uma elaboração difícil e angustio­sa, o advento auspicioso dos novos métodos, dos novos hábitos, da nova orienta­ção; o renascimento científico, que malgrado as primeiras quedas ou vacilações, sentimos surgir com e firme crença de que caminhamos para um futuro mais vigoroso e fecundo; essa metamorfose, que é por ora um misto de ruínas e criações, foi também obra sua, porque o influxo do seu espírito exerceu-se sobre aqueles que o cercavam, e penetrou nas corporações docentes com o prestígio do seu exemplo, e com a força da sua natureza e lealdade".

"Dos fatos que documentam o auxílio prestado ao ensino" - continuou o Prof. VITORINO PEREIRA - "o empenho em coadjuvá-lo poucos sairão da intimidade profissional e da conveniência de amigos; desses, porém, há um que por si só estereotipa a fisionomia e a têmpera do emérito médico. Quando den­tre as muitas arbitrariedades com que poderes públicos tem adaptado a força moral e a dignidade do professorado, uma houve, no Império, que no seu desembaraço excedia a quantas eram então conhecidas; quando, em manifesta oposição à lei mandava-se em nome dela que a Faculdade aceitasse como legal um título fictício, fruto de um tráfego repulsivo, escrevia o Dr. PATERSON estas palavras memoráveis, que deviam estar sempre diante dos nossos olhos, "tendo eu passado no Brasil a maior parte de minha vida que já não é curta, e não tendo pedido a este país e ao seu governo coisa alguma que a Inglaterra não esteja pronta a conceder de boa vontade a qualquer homem, seja qual for a sua origem e nacionalidade, protesto em meu nome e no de outros facultati­vos ingleses legalmente habilitados que praticam no Brasil, contra a injustiça de ser lançado ao seio da nossa sociedade, e sob a responsabilidade e confirma­ção de um nome comum, um homem de educação e de estudos inteiramente diversos dos nossos". "Os homens vêm e vão" (disse ainda PATERSON); as instituições ficam e duram justamente pelo tempo que merecem durar, isto é, enquanto são fiéis à verdade para consigo mesmo e para com os fins que foram criadas. Não é pois, fora da razão dizer que nesta crítica situação do seu destino, a classe médica deste vasto Império tem fixas as suas vistas sobre a Faculdade de Medicina da Bahia, e espera que ela não há de trair a sagrada missão que tem a seu cargo".

Em nome da "Gazeta Médica da Bahia" fez uso da palavra o Dr. PACI­FICO PEREIRA o qual, dentre outros aspectos da personalidade do Dr. PATERSON, abordou o caráter ético-profissional, afirmando: "Para os colegas todas as deferências de uma dedicação sem limites, lealdade exemplaríssima, qualidade imaculada, o tornavam simpático e venerando a toda classe médica, querido e estimado pelos companheiros, velhos e moços, que o consideravam um modelo das virtudes profissionais. Ninguém jamais zelou a honra e dignidade da profissão com sentimento mais apurado e numa prática mais rigorosa e constan­te, Nem nos clientes, nem nos colegas tolerava ele, sem protesto, uma infração da deontologia médica. Na imprensa médica o Dr. PATERSON pugnava sempre pela dignidade profissional, condenando as práticas abusivas, impróprias de fa­cultativos regulares, com que se explora a credulidade pública deslustrando o caráter do elevado ministério que exerce o médico e fazendo-o baixar das alturas do seu nobre sacerdócio ao campo estreito dos interesses e especulações mercan­tes, como se fossem simples mercadores de remédios e de curas, aqueles que devem ser um exemplo vivo de caridade e abnegação".

A este propósito SILVA LIMA relata o exemplo que abaixo transcrevemos: "Um distinto colega, médico de uma família abastada, chamou o Dr. PA­TERSON em seu auxílio para um caso gravíssimo, que veio a necessitar uma ope­ração séria, como extremo recurso; praticou-a a pedido do colega, ajudado por ele e por outros, uma operação que infelizmente, não pode salvar o enfermo. Um dos filhos do paciente perguntou em seguida ao Dr. PATERSON qual o honorá­rio devido a cada um dos ajudantes, ao que lhe respondeu ele que isso era da competência do médico da família de acordo com ele, e que mais tarde lhe daria resposta.

Concordaram os dois assistentes que a cada ajudante se dessem duzentos mil réis e que o Dr. PATERSON teria ao todo seiscentos, de que em tempo daria conta".

"Aceitaram, ou pareceram aceitar este acordo os dois únicos filhos e herdeiros do falecido; mas em vez de o cumprirem à risca, deram a cada ajudante a metade da quantidade estipulada, fato que o Dr. PATERSON só teve conheci­mento semanas depois, e antes de dar a sua conta. Apressou-se em mandá-la imediatamente, acrescentando de propósito, como advertência, este post-scriptum: "a minha conta importa em seiscentos mil réis pela operação, con­ferência e visitas, no pressuposto de que a cada ajudante já terão sido pagos du­zentos mil réis" - e esperou que o procurassem os interessados.

"Algum tempo depois encontrou na rua um dos dois irmãos, que lhe des­culpou de não ter ainda pago a sua conta, mas que o faria brevemente, e acres­centou que a cada ajudante já tinha dado cem mil réis, e que eles ficaram plena­mente satisfeito, mas que a ele pagaria por inteiro.

"Ao ouvir isto o Dr. PATERSON não se conteve que não prorrompesse ali mesmo num ímpeto de indignação, que se traduziu em termos enérgicos, acabando por dizer que não estava disposto a sofrer um tal insulto a ele e ao médico da família, que "não receberia um Real até que aos colegas fossem pagas as contas integralmente; e que nunca mais ousaria mostrar a sua face à luz do dia, se consentisse em associar-se a tão baixa transação.

"Passaram-se os meses, e os dois irmãos, nas vésperas de retirarem-se do país, tiveram a infeliz lembrança de intimar o Dr. PATERSON, por um anúncio público, a ir ou mandar receber a importância que lhe deviam, em prazo e lugar determinados, a hora fixada, sob pena de ser aquela soma depositada por três meses na Secretaria da Santa Casa de Misericórdia, e depois aplicada - como donativo - a um futuro asilo de alienados".

"Ao ler tão estranha provocação, que o forçava a explicações públicas, o Dr. PATERSON lançou mão da pena, imediatamente, e no auge da indignação, respondeu no mesmo jornal do dia seguinte, aos anunciantes, com tal severidade e acrimônia, que causou profunda impressão no público; narrou os fatos e termi­nou seu protesto por estas palavras que traduzem seu caráter intransigente, e o estado do seu espírito: "Ainda quando os meus filhos chorassem por pão e eu não o tivesse para lhe dar não tocaria num Real daquele dinheiro, muito bem ganho embora com dias de trabalho e noites de vigília, enquanto se não fizesse plena reparação aos meus colegas insultados. E se eu tenho prestado algum serviço aos estabelecimentos pios desta cidade, ou bem mereci alguma vez deste país, espero que eles, um e outro, lhe devolverão às faces a peita odiosa e torpe, como eu lhes devolvo, o seu grosseiro insulto".

"Escusado dizer" - acrescenta SI LVA LIMA - "que o Provedor da Santa Casa de Misericórdia recusou aceitar o donativo".

Eis aí, em rápidas pinceladas, JONHN LITERWWOD PATERSON, sua vida - toda ela dedicada à Medicina e à Bahia, seu caráter e sua obra!

Contemplando-o ao longo dos cem anos que nos separam, esta Academia o reverencia e exclama: - PATERSON, obrigado. Muito obrigado, PATERSON!


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