sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A MORTE DE NINA RODRIGUES E SUAS REPERCUSSÕES (IV)



NINA RODRIGUES
 RETRATO  A ÓLEO
EXISTENTE NA SALA DOS LENTES DA FACULDADE
DE MEDICINA DA BAHIA
 
 
 
 








Autor: Marcos A.P.Ribeiro



"Às 15:30 horas de 11 de agosto, o paquete inglês “Aragon” fundeia no cais dos navios mercantes de Salvador, trazendo a bordo o corpo de Nina Rodrigues. Ato contínuo, a comissão de recepção, composta por alunos das escolas superiores de Salvador, é conduzida numa lancha e em escaleres para receber os restos mortais. Após as formalidades exigidas pela Inspetoria da Saúde dos Portos, a comissão sobre a bordo do “Aragon” e apresenta, em nome da “mocidade acadêmica da Bahia”, as condolências à viúva Nina Rodrigues e à sua filha, Alice.
O ataúde estava encerrado num volume, guardado no porão da proa. Dois volumes são entregues à comissão: um contém o esquife; o outro, coroas fúnebres. Os volumes são içados, depositados numa galeota, e rebocados por um vapor até o arsenal da Marinha. No arsenal, o esquife já fora do invólucro, é conduzido pelos membros da comissão para um coche de 1ª classe, estacionado em frente a seu portal principal.
O coche fúnebre, acompanhado por numeroso cortejo de alunos e professores das escolas de Medicina, Direito e Politécnica, com os respectivos estandartes envoltos em crepe negro, avança lentamente pelas ruas Arsenal da Marinha, Alfândega, Princesa, Santa Bárbara, Barão Homem de Mello, ladeira da Montanha e praça Castro Alves.
O cortejo fúnebre chega à igreja de São Bento às 18 horas. Professores e alunos retiram o féretro do coche e o transportam até a igreja que, como descreve o jornal da época, “apresentava um aspecto simples, mas de uma severidade expressiva” (1).
Do alto das portas principais pendem cortinas de casimira negra, presas por sanefas de veludo da mesma cor, ornadas de prata; nas portas principais há escudos com inscrições alusivas ao evento. Tribunais, galeria do coro e púlpitos também se encontram ornamentados com casimira e veludos negros. No centro da nave está o catafalco em estilo renascentista, com oito metros de altura, composto de abóboda apoiada em quatro colunatas, sobre a qual ergue-se uma cruz, construído pelos monges do mosteiro anexo. Ladeiam-no incensórios de prata, tocheiras e vasos com flores e crótons. Em frente ao catafalco destacam-se os estandartes das escolas superiores da Bahia: ao centro, o da Faculdade de Medicina; à direita, o da Escola Politécnica; à esquerda,  da Faculdade de Direito.
Quinze turmas, cada uma com quinze estudantes, revezam-se em turnos de uma hora, sem interrupções, no velamento do corpo, até o momento em que o féretro sai da igreja para o cemitério do Campo Santo. Estão presentes às exéquias: Alfredo Britto, diretor da Faculdade de Medicina e concunhado de Nina Rodrigues; Temístocles Nina Rodrigues, irmão do falecido; Antônio Almeida Couto, irmão da viúva; Braz do Amaral, Guilherme Rabello, Pacífico Pereira, Pedro da Luz Carrascosa, Josino Cotias, Bonifácio Costa, professores da Faculdade de Medicina; Alexandre Maia Bittencourt, Archimedes de Siqueira Gonçalves, professores da Escola Politécnica; Carlos Devoto, diretor do Ginásio Estadual.
Pouco antes das 9 horas de 12 de agosto, sábado, a banda do 1º Corpo de Regimento Policial, em uniforme de gala, ataca a primeira marcha fúnebre. Nesse momento a nave está repleta de pessoas: familiares, autoridades civis, militares e eclesiásticas do Estado da Bahia, populares e a imprensa.
As missas começam a ser celebradas pelas 9:30 horas, no altar-mor e nos laterais. A do altar-mor é celebrada pelo prior dos beneditinos; quatro noviços entoam cantos gregorianos. Findos os atos religiosos, uma turma de seis estudantes retira o esquife do catafalco e o deposita sobre o coche fúnebre, conduzido por três parelhas de cavalos castanhos escuros, estacionado à frente do templo.
O coche fúnebre abre o cortejo. Em seguida, vêm o estandarte da Faculdade de Medicina e o andor com a coroa desta faculdade; a coroa da família; o estandarte da Faculdade de Direito; o estandarte da Escola Politécnica, com uma coroa em forma de locomotiva, tendo nas laterais da casa de maquinista as datas de nascimento e morte de Nina Rodrigues; encera-o a banda da polícia militar.
Muitas pessoas se aglomeram ao longo das ruas por onde passa o cortejo fúnebre. A chegada ao Campo Santo acontece às 11 horas. Retirado do coche, o féretro é conduzido à capela do cemitério, por professores e alunos da Faculdade de Medicina, e pelo irmão do falecido, Temístocles Nina Rodrigues.
O corpo é encomendado, transferido até a borda da sepultura – aberta à direita da capela, num sítio alto, de onde se avista parte do bairro da Barra – e depositado num estrado de madeira forrado de preto, com franjas prateadas, a poucos metros da tribuna sobre a qual o estudante de Direito Aydano Sampaio pronuncia um discurso. A seguir, fala o professor catedrático da Faculdade de Medicina, Guilherme Rabello.
Guilherme Rabello inicia seu discurso aludindo ao Hamlet, de Shakespeare. Diz que diante do  “túmulo aberto”, os eternos problemas do ser ou não ser, que tanto perturbaram o “merencório príncipe da Dinamarca”, perdem o sentido. Toda discussão intelectual, toda contenda entre sistemas e escolas, e mesmo o mergulho do pensador no “oceano profundo e insondável que é o mundo da inteligência”, nada significam. A vida, segundo ele, só teria sentido na “intransigência destemida e austera ao serviço de um ideal”; não pudesse alguma vez o coração do homem abrir-se para o amor e a justiça, a alma sofreria da “amaríssima súplica de Leconte de Lisle” (2).
Afirma que o corpo de Nina Rodrigues foi recebido na Bahia com 0 mesmo recolhimento e orgulho com que os restos mortais do “heróico prisioneiro de Santa Helena” (Napoleão) fora recebido na França, em 1840. E que diante do corpo inânime do “preclaro colega”, discípulos, colegas, e todos que amam sua obra, terão nela o “nobre estímulo”, para, em nome da ciência, da Faculdade de Medicina e de sua memória, repetirem com  os lábios ungidos, como eco da própria voz de Nina Rodrigues, o “moto supremo” de Goethe moribundo: “Mehr Licht!”
*
Em 26 de maio de 1908, na presença do governador da Bahia, Dr. José Marcelino Souza, a morgue da Faculdade de Medicina é inaugurada e recebe o nome de Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, em sua homenagem. Nina idealizara e projetara o Instituto, ao qual pretendia incorporar a tecnologia mais avançada de sua época. Como vimos, em seus últimos dias em Paris, doente e debilitado, o professor percorria ruas da cidade visitando possíveis fornecedores e realizava anotações sobre o funcionamento da morgue.
Embora tenha sido um cientista reconhecido nacional e internacionalmente, trabalhando em tempo integral durante toda sua vida adulta, Nina Rodrigues deixou poucos bens e a viúva em situação financeira difícil. A análise de seu testamento revela um sobrado na ladeira de São Bento, onde morava com a família, alguns móveis, entre os quais um piano alemão, e um biblioteca com cerca de mil volumes, principalmente Medicina e Literatura, adquirida pela Faculdade de Medicina por cinco contos de réis. O sobrado media 6.45m de frente; no primeiro pavimento possuía duas salas, uma de visita, uma de jantar, e dois quartos; no térreo, mais duas salas e dois quartos, cozinha e banheiro. Contava também com pequeno jardim gradeado de ferro e um sótão”
 
 
 
 
 
 
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(1)= Diário de Notícias, edição de 11.08.1906

(2)= Diário de Notícias, edição de 12.08.1906

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