NINA RODRIGUES
RETRATO A ÓLEO, EXISTENTE NA
SALA DOS LENTES - FACULDADE DE
MEDICINA DA BAHIA
O PROCESSO DA MORTE
Em 5 de abril de 1906, Nina
Rodrigues é indicado pela Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia
delegado ao IV Congresso Internacional de Assistência Pública e Privada, que se
realizaria em Milão, entre os dias 23 e 27 de maio daquele ano.
Em 4 de maio ele emite seu último
parecer como médico-legista, sobre “lesões contundentes seguidas de morte”. No
documento, o professor registra, com letra trêmula e insegura, que seu precário
estado de saúde não permitia “Fundamentar largamente a consulta pedida”,
limitando-se por isso a responder estritamente aos quesitos forenses(1,2).
Nos últimos meses, Nina Rodrigues
andara alquebrado; adquirira grave infecção em viagem ao Conde, no litoral
norte da Bahia. Tentando recuperar-se, fez vilegiatura em Alagoinhas, aprazível
cidade, 100km a noroeste de Salvador. Retorna parcialmente reabilitado à
capital baiana. Então recebe o convite para representar o Brasil em Milão.
Mas, no dia do embarque para sua
primeira viagem à Europa está pálido, débil, descrente de sua recuperação.
Assim mesmo parte.
Nina Rodrigues, sua mulher, Maria
Amélia Couto Nina Rodrigues, e a filha de doze anos, Alice Nina Rodrigues,
chegam a Lisboa em 17 de maio. Hospedam-se no Hotel de Inglaterra. A longa
viagem marítima provavelmente fizera recrudescer a doença. E na própria noite do desembarque Nina Rodrigues
apresenta uma crise de hemoptise. Os médicos são chamados.
A conferência dos médicos
lisboetas, realizada em 19 de maio, afasta a hipótese de tuberculose pulmonar,
pela transparência das radiografias pulmonares; porém, a exclusão dessa
suspeita diagnóstica não pode ser assegurada: casos de tuberculose pulmonar
confirmados pelo exame de escarro e sintomatologia, coexistem com a
transparência radiográfica dos pulmões.
Um jornal de Lisboa, o “Correio
da Europa”, assim descreve: “Compungia vê-lo! Um homem de tanto conhecimento,
contando apenas 44 anos de idade tão bem aproveitada em trabalhos tão úteis e
de incontestável valor, estava inteiramente perdido! Sofria de um cancro do
fígado. A operação era impossível, atenta a fraqueza do enfermo (3).
Na capital portuguesa, as
suspeitas diagnósticas oscilam entre “cancro do fígado” e colecistite
calculosa; segundo os médicos portugueses, o caso só se resolveria com uma
intervenção cirúrgica, da qual Nina Rodrigues declina.
Ele segue para Paris, centro
médico mais importante, onde é conhecido entre os especialistas franceses, os
quais, segundo Afrânio Peixoto, “o recebem festivamente”. Chega em 19 de junho
(4).
Os colegas franceses fazem os
mais desencontrados diagnósticos: dilatação do coração e da aorta, tuberculose
do pericárdio, abcesso aureolar do fígado, tuberculose das serosas (pleura,
pericárdio e diafragma). A doença avança.
Aproveitando breve arrefecimento
dos sintomas, Nina Rodrigues visita tradicionais fornecedores da Faculdade de
Medicina da Bahia, na rue de Bac, para escolha dos instrumentos que equipariam
o instituto médico-legal em construção na Bahia.
Em 3 de julho, seu irmão mais
próximo, o tenente Temístocles Nina Rodrigues, viaja a Paris para assiti-lo na
doença.
Em 10 de julho, durante visita à
morgue de Paris, onde assiste autópsias e coleta informações sobre o
funcionamento do serviço, Nina Rodrigues subitamente desfalece, sendo conduzido
ao hotel.
Em 13 de julho, em seu hotel, o
Nouvel Hotel, rue Lafayete, 49, pelas 3 horas da madrugada, Nina Rodrigues é
acometido de forte hemoptise e fica muito prostado. Diz aos amigos: “Isso é o
começo do fim”(5).
Um médico português residente em
Paris, cujo nome não foi identificado, acompanha seus últimos momentos,
passando as noites ao seu lado. Um colega brasileiro, Dr. Eduardo Moraes,
também está presente. As visitas são suspensas. E apenas os médicos ficam à
volta do leito, calados.
Nina Rodrigues mantém a lucidez
até o fim. Percebendo a aproximação da morte, pede um padre e se dirige à
esposa: “Sei que vou morrer: cuide de nossa filha, e vá para a Bahia no dia 27,
em companhia do Dr. Eduardo de Moraes e família” (6). Ele comprara passagens de
volta para si e sua família num vapor inglês que partiria para o Brasil em 27
de julho.
Nina Rodrigues morre às 7 horas
de 17 de julho de 1906, em seu quarto de hotel parisiense. A autópsia do corpo
é realizada por Paul Brouadel (a quem Nina Rodrigues admirava), importante
legista francês, diretor da Faculdade de Medicina de Paris e fundador do
Instituto Médico-Legal e Psiquiátrico da mesma faculdade (7).
Práticos dos anfiteatros de
anatomia da Faculdade de Medicina de Paris, que Nina Rodrigues costumava freqüentar,
embalsamaram o cadáver, no fim da tarde de 17 de julho, na presença do
comissário de polícia e amigos, entre os quais os colegas Eduardo Morae, Anísio
Circundes de Carvalho e João Cerqueira. Após o embalsamento, o corpo é
depositado num ataúde duplo de zinco e madeira, guarnecida de prata.
No início da manhã de 18 de
julho, acompanhado de pequeno cortejo de carros, o ataúde é transportado em
coche fúnebre para a igreja de Nossa Senhora de Lorette, onde é depositado num
catafalco. Às 9 horas é celebrada a missa de encomendação do corpo, assistida
por algumas famílias brasileiras e colegas da Bahia, São Paulo, Rio Grande do
Sul, Rio de Janeiro, Piauí e Pernambuco, presentes em Paris naquela época.
Findo os atos religiosos, o
esquife, coberto de coras de flores, é conduzido para um estrado de ferro,
junto à porta lateral direita. Depois do lacramento do caixão pelo comissário
de polícia, este descende a uma cavidade subtérrea, fechada por portas
metálicas rentes ao chão, onde aguardaria o transporte para a Bahia.
(CONTINUA)
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Notas de rodapé
1)Lamartine Lima, “Roteiro de Nina Rodrigues”,
Salvador, Centro de Estudos Afro-Orientais?UFBa, 1980, pg.8). Sobre Lamartine, ver MÉDICOS ILUSTRES DA BAHIA
E SERGIPE, maio de 2011.
2)Correio da Europa. edição de 19.09.1906
3)Correspondência da viúva Nina Rodrigues; nota
manuscrita de Afrânio Peixoto.
4)Jornal de Notícias, edição de
10.08.1906.
5)Ibidem
7)Paul Brouadel, ardente
republicano desde os últimos dias do II Império, participou como médico da
Comuna de Paris. Professor de medicina legal na Faculdade de Medicina de Paris
em 1879, reformou o ensino da disciplina. Fundou o Instituto Médico-Legal e
Psiquiátrico da Universidade de Paris, que a partir de 1903/1904 formou
especialistas respeitados nos meios médicos e jurídicos (Ruth Harris,
Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no “fin de siécle”. Rio de
Janeiro, Rocco, 19920.